No movimento #MeToo que originou várias denúncias públicas, nem "Deus" escapa: uma reportagem exclusiva da CNN publicada esta quinta-feira avança com acusações de comportamento inadequado e assédio sexual contra Morgan Freeman.

A CNN dá conta que 16 pessoas falaram com as jornalistas no âmbito da investigação e oito disseram que foram vítimas do que "algumas chamaram assédio e outras comportamento inadequado".

Morgan Freeman é um dos atores mais prestigiados de Hollywood, tornando-se de tal forma intocável que ninguém sequer colocou em questão a sua escolha, enquanto afro-americano, para o papel de Deus no filme "Bruce, o Todo-Poderoso" (2003), pois era visto já como uma lenda de corpo inteiro (e voz) cujos papéis raramente tinham a ver diretamente com a cor da pele.

A CNN entrou em contacto com o porta-voz do ator e, a seu pedido, enviou uma lista detalhada das acusações. Não obteve resposta a vários pedidos subsequentes para fazer uma declaração pública.

A reação acabou por surgir em comunicado hora e meia após a publicação do artigo: "Qualquer pessoa que me conheça ou tenha trabalhado comigo sabe que não sou alguém que fosse intencional ou conscientemente ofender ou deixar alguém desconfortável. Peço desculpa a qualquer pessoa que se sentiu desconfortável ou desrespeitada - essa nunca foi minha intenção".

Os relatos

Os comportamentos terão ocorrido na rodagem de filmes, na sua produtora Revelations Entertainment e até com jornalistas em entrevistas.

De facto, tudo começou após Chloe Melas, que assina o artigo com An Phung, ter sido alvo de "comportamento inapropriado" há mais de um ano durante uma entrevista com o ator, que teceu vários comentários de cariz sexual enquanto olhava insistentemente para ela, grávida na altura de seis meses.

Uma queixa junto dos recursos humanos da CNN e do estúdio Warner Bros obteve uma resposta "mínima", o que a levou a fazer vários telefonemas para perceber se outras mulheres tiveram a mesma experiência ou fora um caso isolado. As reações não deixaram dúvidas e deram início a uma investigação que durou vários meses.

Entre os relatos obtidos estão o de uma assistente no filme "Ladrões Com Muito Estilo" (2017), então com vinte e poucos anos, que diz que o vencedor do Óscar "estava sempre a tentar levantar a minha saia e perguntava se usava roupa interior". Nunca o conseguiu fazer, garante, mas tocava na saia e tentava fazê-lo. Quando ela se afastava, voltava a tentar.

Este assédio não era discreto: o ator "Alan [Arkin] disse-lhe para ele parar. O Morgan ficou atrapalhado e não soube o que dizer".

Por causa da experiência, ela abandonou a indústria.

Quatro das pessoas que trabalharam com o ator nos últimos 10 anos descrevem-no a portar-se de formas que deixavam as mulheres desconfortáveis.

Uma mulher, envolvida em "Mestres da Ilusão" (2013), acusou o ator de fazer comentários sobre o seu aspeto físico em várias ocasiões. Outra, que trabalhou com ele em "O Cavaleiro das Trevas" (2008), disse que pessoalmente não teve más experiências, mas testemunhou comentários incorretos.

Nenhum delas relatou o que se tinha passado com medo de perder o emprego. Em vez disso, arranjaram estratagemas para contornar a situação.

"Ele comentou sobre as nossas figuras. Sabíamos que se ele fosse passar por nós... não deveríamos usar qualquer top que mostrasse os nossos seios, não usar nada que mostrasse as nossas nádegas, ou seja, não usar roupas justas", explicou à CNN a assistente de "Mestres da Ilusão".

Uma mulher que trabalhou com ele noutro filme recente recordou um incidente na festa de despedida: "Ele estava a olhar para os meus seios e disse-lhe 'Os meus olhos estão cá em cima'. Depois fomos tirar uma fotografia de grupo e ele pressionou-se contra mim. Foi inapropriado."

Um antigo funcionário masculino da produtora Revelations também contou à CNN os comentários de tom "chocante" que ouviu de Freeman durante a rodagem de vários filmes e que correspondem aos relatos das acusadoras.

"Coisas como 'Gostaria de estar uma hora com ela' ou fazer comentários vulgares ou sexuais sobre mulheres. Ele era verbalmente inapropriado e era simplesmente chocante. Ficava-se mais chocado do que outra coisa porque é difícil ter  a coragem para lhe dizer 'Isso é inapropriado'. Fica-se de boca aberta. É complicado porque ele é a pessoa mais poderosa em qualquer rodagem. É estranho porque não se espera isto de Morgan Freeman, alguém que respeitamos", explicou.

A CNN abordou dezenas de pessoas que trabalharam para ou com o ator. Algumas elogiaram-no, garantindo que nunca testemunharam nada incorreto ou que ele foi sempre profissional.

No entanto, em várias outras situações, quando uma jornalista da CNN entrava em contacto com alguém que tinha trabalhado com ele para saber se tinham visto ou sido vítimas de comportamento inadequado por parte de um ator com quem tivessem trabalhado, sem referir o nome de Morgan Freeman, essa pessoa respondia logo que sabiam exatamente em quem a jornalista estava a pensar.

Algumas foram fontes e outras recusaram ou não permitiram que fosse usado o que disseram na reportagem.

"As alegações contra o Freeman não se referem a coisas que se passaram em privado. São coisas que alegadamente aconteceram em público, em frente a testemunhas e até mesmo em frente às câmaras", escrevem as jornalistas An Phung e Chloe Melas.

"Antes do [movimento de denúncia] #Metoo, muitos homens da indústria do entretenimento comportavam-se sem medo das consequências, porque muitas vezes quando algum homem com poder o fazia, era a vítima que sofria as consequências", lamentam.

Uma lenda de Hollywood

Morgan Freeman, que faz 81 anos a 1 de junho, é um dos atores mais respeitados da indústria: ainda em janeiro recebeu a maior distinção dos Screen Ators Guild, o sindicato dos atores norte-americanos, pela sua carreira e ativismo humanitário.

A sua carreira só disparou em termos de reconhecimento e de estatuto por todos por volta dos 50 anos, primeiro no papel de um proxeneta em "Nova Iorque, Cidade Implacável" (1987), que lhe valeu a primeira nomeação ao Óscar de Melhor Ator Secundário, depois quando participou nos filmes "Miss Daisy" e "Tempo de Glória", ambos de 1989, sendo nomeado ao Óscar de Melhor Ator pelo primeiro.

Antes, dividiu-se entre o teatro, a televisão e o cinema, em papéis de relevo variável, que lhe garantiram uma reputação de ator seguro mas ainda sem o reconhecimento que os grandes papéis no cinema lhe trariam.

Em 1992 trabalhou pela primeira vez com Clint Eastwood, no oscarizado "Imperdoável", a que se seguiriam "Million Dollar Baby - Sonhos Vencidos" (2004), que lhe valeu o Óscar de Melhor Actor Secundário, e "Invictus", com nova nomeação à estatueta dourada, a sexta.

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