Richard e Robert Sherman criaram canções de grande êxito para estrelas juvenis como
Annette Funicello,
Bobby Darin ou os
Beach Boys, antes de entrarem a contrato com
Walt Disney, para quem criariam músicas imortais, não só para filmes como também para parques temáticos, sendo, neste último caso, a mais importante de todas a omnipresente
«It’s a Small World».

E embora a sua parceria tenha durado cerca de cinco décadas e ambos tenham aparecido com uma imagem de dupla inseparável nos mais diversos documentários sobre os estúdios Disney dos 25 anos, a verdade é que tudo isso era fachada e os irmãos compositores nunca se deram bem ao longo de todas as suas vidas, que circulam ambas em redor das oito décadas de existência. É este o tema do documentário
«The Boys», produzido e realizado pelos filhos de ambos, e apresentado ontem no
Festival Internacional de Cinema de Animação de Annecy.

Os primos
Jeffrey C. Sherman e
Gregory V. Sherman, filhos de Richard e Robert Sherman, reencontraram-se há poucos anos numa homenagem feita aos respectivos pais, mas não se falavam há cerca de 40 anos, desde crianças.

Decididos a descobrir a origem do feudo familiar e reatar as ligações entre os irmãos, lançaram mãos à obra na concretização deste documentário sobre os pais, para o qual ambos aceitaram responder de forma honesta a longas entrevistas. E a eles juntou-se um enorme leque de convidados que com eles privaram ou os admiravam, como
Julie Andrews,
Dick Van Dyke,
Angela Lansbury,
John Williams,
John Lasseter,
Hayley Mills,
Alan Menken ou
Ben Stiller, este um dos produtores do filme, sob tutela da Disney, que aqui não teve medo de dessacralizar dois dos seus maiores ícones vivos.

Filhos de Alan Sherman, também ele importante compositor, os irmãos tinham uma diferença de três anos de idade, que foi muito ampliada pela ida de Robert combater na Segunda Guerra Mundial, que fez dele um dos primeiros norte-americanos a entrar no Campo de Concentração de Dachau e lhe deu valeu pesadelos para toda a vida.

Os traumas de guerra nunca plenamente assumidos vêm ao de cima no documentário e aumentaram a diferença de personalidade dos dois irmãos, que já de si era acentuada. Onde Richard era expansivo e gregário, Robert era recolhido e sombrio, e nada tinham em comum a não ser a profissão, em que, após tentarem a sorte a solo sem grandes frutos, resolveram juntar forças e tornaram-se então imbatíveis. As famílias porém, após a morte dos pais, no início dos anos 70, nunca mais se deram socialmente. Os irmãos trabalhavam juntos e mantinham uma fachada de amizade para a comunicação social, mas as relações entre ambos acabavam aí.

Porém, foi dessa mesma tensão de personalidades que surgiram canções tão inesquecíveis como as que escreveram para
«Mary Poppins» (que lhes valeu os Óscares de Melhor Canção e Banda Sonora Original, e que incluía
«Supercalifragilisticexpialidocious»,
«A Spoonful of Sugar» e
«Feed the Birds»),
«O Livro da Selva»,
«As Extraventuras de Winnie the Pooh» e
«Os Aristogatos», ou mesmo para outros filmes fora da Disney, como
«Chitty Chitty Bang Bang» ou
«Charlotte’s Web».

A razão para a tensão e animosidade entre ambos não parece ter uma explicação concreta mas uma miríade delas, assente em diferenças de temperamento, e no final do documentário, apesar do amor entre eles que transparece muitas vezes na emoção das suas palavras, não há final feliz entre ambos, não há uma reunião final que amacie todas as mágoas. Quando ela acontece, como sucede recorrentemente quando eles têm de se reunir nas diversas homenagens de que são alvo ou na estreia das versões musicais para teatro de «Mary Poppins» ou «Chitty Chitty Bang Bang», o desconforto entre ambos continua presente. O que revela que, se as canções que compuseram deixaram muitos milhões de pessoas felizes ao longo do último meio século, isso nunca foi fruto de uma relação de amizade e cumplicidade mas sim de tensão permanente, com muita coisa que não ficou dita.

Acima da surpreendente e reveladora história de bastidores de duas figuras importantes do cinema,
«The Boys» fica também como um excelente e esclarecedor documentário sobre dois irmãos desavindos, que convoca o riso e a lágrima, com dois seres tão humanos nas emoções com transcendentes no talento.