As declarações do escritor moçambicano foram feitas numa entrevista à agência Efe, no âmbito da festa literária de Saint Jordi, em Barcelona, na qual irá participar.

“A Europa não conhece a literatura africana e, embora a situação já tenha melhorado muito, continuam a ser alguns nomes, em boa parte nigerianos da diáspora, que contam uma certa visão do seu mundo, que é um mundo de mestiçagem, mas creio que ainda falta muito para conhecer o continente linguisticamente mais rico do mundo”, afirmou, em vésperas do Dia Mundial do Livro.

África – acrescentou – herdou algo que não é próprio, “um peso da Europa” que se traduziu em três Áfricas: a francófona, a anglófona e a lusófona. “Se África já é um subúrbio no contexto do mundo, a lusófona é um subúrbio do subúrbio, porque não tem o peso cultural do inglês e do francês”.

A herança linguística que Moçambique recebeu foi “uma conquista mútua, que compartilhamos” e, hoje, o português enriqueceu-se pelo Brasil e pelos cinco países africanos, e acabou aceitando contribuições de outras culturas, considerou.

O autor, que abordou a guerra civil moçambicana e o colonialismo português na sua obra literária, considera que “a paz, no sentido formal, é um processo ainda em curso” que durará enquanto continuar a existir uma força militar da RENAMO que reative a violência sempre que não consiga no parlamento uma vitória política.

A contribuição da literatura para esse processo de paz é, na opinião do escritor, “ter feito uma incursão num território proibido: a memória da guerra”.

Mia Couto comentou que, se alguém visita hoje Moçambique, parece que não houve guerra e isso acontece porque “as pessoas optaram por esquecer, não foi uma coisa das forças políticas, mas sim das pessoas, pois as raízes da guerra continuam vivas e ninguém quer reabrir essa caixa de Pandora”.

A literatura ajudou a “visitar esse tempo cruel, a guerra, e tentou reumanizá-la através de histórias contadas às pessoas que nela intervieram”, disse.

Sobre o dia do livro, Mia Couto confessa que lhe falaram tanto de Sant Jordi que é como se já conhecesse a festa: “É algo estranho no mundo e isto é motivo de esperança nos tempos que correm”, comentou.

Os seus inícios na poesia foram resultado “mais de incompetência do que de competência” e, como filho de um poeta, cresceu com a poesia em casa.

“O meu pai vivia poeticamente e dava importância a coisas que não eram visíveis, que eram inúteis e isso ajudou-nos a ter uma visão do mundo. E foi ele quem me roubou os versos que saíram no jornal e que publicou sem a minha autorização; e embora na altura me tenha chateado muito com ele, agora estou-lhe eternamente agradecido”.

Apesar de posteriormente se ter dedicado à narrativa, Mia Couto continua a considerar-se “um poeta que conta histórias” e acrescenta que “em Moçambique é difícil não ser poeta, porque este encontro entre diferentes visões do mundo só se pode resolver através da poesia” e a África que conhece “é poética”.

O lirismo africano que se produz de norte a sul está intimamente ligado a uma cultura dominada pela “oralidade”, num continente em que as tradições orais estão muito vivas.

Sobre a questão do rigor, o escritor relatou: “Uma vez um macaco viu um peixe num rio e pensou pobre animal, está-se a afogar. Pegou nele e verificando que se mexia, pensou que era de felicidade, mas acabou por morrer. Pensou que se tivesse chegado antes, teria conseguido salvá-lo. O mundo está cheio de salvadores, e esta história foi o melhor combate à demagogia do político”.

Depois de ter recentemente publicado “Trilogia de Moçambique”/ “As Areias do Imperador” (“Mulheres de Cinzas”, “A Espada e a Azagaia” e “O Bebedor de Horizontes”), Mia Couto já tem escritos doze capítulos do seu novo livro, um romance sobre a infância na sua cidade natal da Beira.

“Ia visitar a minha cidade, para reativar memórias, mas nessa semana ocorreu o furacão e não pude, e esse facto mudará profundamente esta história. Ia em busca das minhas recordações e alguns desses lugares já não existem”, assinalou Mia Couto, que se sente “perdido neste momento”, um pouco órfão da sua própria infância.

O escritor revela ainda a sua ligação à poesia de Lorca e de Miguel Hernández, como herança poética do pai, mas também por “empatia política com a história que encarnaram ambos”, um vínculo que perdurou no tempo, graças às versões musicadas de Joan Manuel Serrat.

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