O cante alentejano, disse, em entrevista à agência Lusa, “tem hoje uma função social como nenhuma outra prática”, como se fosse uma “esteva” numa região cada vez mais desertificada. “A esteva é a última barreira do deserto e, em muitos lugares, esta ‘esteva’ que é o cante é o único momento e lugar onde as pessoas se podem encontrar e cantar”, disse.

Para o também coordenador da candidatura do cante alentejano a Património Cultural Imaterial da Humanidade, pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), a importância social deste canto a vozes vai ainda mais longe.

Além de “combater esta solidão em sítios onde se perdeu o centro de saúde, o posto dos CTT”, e por aí fora, o cante permite que “essas pessoas, esses homens e mulheres [dos grupos corais], possam sair do seu lugar, conviver e mostrar a sua tradição”.

Por isso, segundo Paulo Lima, o “selo” da UNESCO é “apenas uma certificação” que pode vir a ser dada a uma prática cultural que, “por direito próprio”, já é “património único” e “património da humanidade” para “as mais de três mil pessoas que fazem do cante uma parte substancial da sua vida”, muitas das quais o “vivem de uma forma intensíssima”, como se fosse “essa última esteva”.

O que o cante conquista, caso seja classificado Património Cultural Imaterial da Humanidade - decisão a ser tomada numa reunião da UNESCO na próxima semana, em Paris -, é “um novo espaço e visibilidade mundial”, afiançou Paulo Lima.

“O cante tem muito a ganhar” com uma eventual proclamação porque, aí, “é o mundo que olha e conhece esta forma de cantar de um pequeno território que é o Alentejo” e abrem-se “perspetivas de sustentabilidade e de transmissão que até agora estavam vedadas”, considerou.

Mas, agora, o canto a vozes típico das terras alentejanas, sobretudo do Baixo Alentejo e Alentejo Central, “já ganhou”, indicou: “Nunca se falou tanto em cante nos últimos anos” como nestes cerca de 20 meses de candidatura.

O cante e os grupos que o entoam têm sido chamados para espetáculos e projetos e a atenção do mundo académico cresceu, exemplificou, acrescentando: “Surgiram grupos por todo o lado” e os mais antigos “ganharam nova vida”.

Com a tomada de posição da UNESCO ao “virar da esquina”, as expectativas são elevadas, mas, alertou o antropólogo, no caso de decisão favorável, tal não significa “um cheque em branco”.

“Uma eventual proclamação não é uma medalha que se dá e que fica para a vida inteira. Aquilo que a UNESCO faz é ver se aquilo para que estamos a pedir a classificação tem ou não valor patrimonial global” e, depois, “a questão é o que é que vão fazer” para o preservar, avisou.

Para tal, a candidatura envolve um plano de salvaguarda, para a sustentabilidade, dignificação, promoção e transmissão do cante, que vai ter de ser implementado, lembrou, até porque “daqui a cinco anos haverá uma avaliação” do que foi feito.

“Uma proclamação e integração nas listas internacionais da UNESCO é o princípio. O mais difícil está por fazer”, alertou.

Os cerca de 150 grupos corais do país - masculinos, femininos, mistos ou de crianças - devem interiorizar também que, se o seu canto ganhar o tão ambicionado “selo”, passam a representar “uma identidade reconhecida à escala global” e têm de ser “parte da estratégia” e “lutarem por aquilo que é seu por direito”.

“Encaro o que vai acontecer na próxima semana com muita alegria e já estou a antecipar, a tentar encontrar uma boa garrafa de medronho para abrir”, frisou Paulo Lima, admitindo que será uma “desilusão”, mas não uma derrota, se o cante não for proclamado pela UNESCO: “Há 15 anos que trabalho nesta ideia, seriam apenas mais cinco anos” de espera para apresentar nova candidatura.

@Lusa