O que ficou a faltar, porém, neste interlúdio de mais de uma década em que Ornatos nunca se deixaram de ouvir e de falar, foi o privilégio do “ao vivo”: de poder sentir na pele, mais direta e intensamente, as canções integrantes da existência de cada um, numa experiência de cumplicidade partilhada nas vozes elevadas pela força de uma euforia comum. Não sabemos ao certo que promessas ficarão por cumprir agora que essa vontade velha pôde ser concretizada por muitos. Sabemos apenas que as datas já cumpridas terão correspondido e saciado a avidez de quem a estas conseguiu acorrer. Depois da presença marcada na (re)estreia na capital, o Palco Principal acompanhou o regresso de Manuel Cruz, Nuno Prata, Elísio Donas, Peixe e Kinörm a casa, para a assistir à quarta das seis atuações esgotadas no continente.

Jogo em casa nem sempre é sinónimo de jogo ganho, mas neste caso não foi deixada margem para dúvidas, sequer. A banda encontrou à sua espera um Coliseu do Porto repleto, sedento pelo seu quinhão de lembranças e cantigas que se repartiram por toda a audiência. Para Nunca mais Mentir deu o mote tanto ao começo da noite como ao reencontro com o “Monstro”, feito sentir com maior fervor nos teclados fantasmagóricos de Pára de Olhar Para Mim, nos fôlegos roubados a Dia Mau e Chaga, nos longos coros em que os temas Ouvi Dizer e Capitão Romance, chegados de uma assentada, se transformaram. O mesmo “Monstro” que ressurgiu materializado numa réplica do boneco da capa do disco e foi entregue à banda no início do primeiro encore, e beijado por um Manuel Cruz embevecido.

Ainda na primeira parte, “Cão!” (1997) veio puxado pela trela d' A Dama do Sinal, num momento que originou os primeiros elogios à atitude do público. Um Crime à Minha Porta levou o vocalista a sublinhar a “bela festa que aqui se fez!”, para, de seguida, Mata-me Outra Vez encaminhar o público para mais um momento de canto partilhado. O "Cão!" continuou o passeio ainda por Bigamia e 1 Beijo = 1000, por exemplo. Pelo meio, canções repescadas a um antigamente ainda mais longínquo, como Gato Com Dois Chifres, a descambar em alucinação maquinal e psicadelismo, e Sacrificar, música escrita e originalmente cantada pelo primeiro vocalista da banda, Ricardo Almeida.

O primeiro de quatro regressos a palco, repartidos por 38 canções, no total, deixou no ar a pergunta que se segue. O loop conclusivo de O.M.E.M, movido à guitarra em distorção, “foi tão bom para ti como foi para mim?” deixa no ar o reverso, se foi tão bom para os Ornatos como para a plateia. A julgar pelos sorrisos lançados, pelos gestos cúmplices entre Peixe e Cruz, pelos aplausos da banda, dir-se-ia que o momento vivido em palco - que o regresso a casa - teve um sabor especial. A confirmação oficializou-se nas palavras do frontman dos Ornatos, mais adiante: “quero que saibam que nos fizeram muito felizes”.

Quem diria que um dia voltávamos a ouvir Raquel, relegada para o segundo encore, juntamente com a homenagem a Marta. Mais a baixo, lia-se um cartaz que provocava: “Quem Diria Que Um Dia Íamos Aos Bastidores”, que talvez não tenha tido tanta sorte como o que afirmava: “Ouvi Dizer Que Vamos Ao Palco”. Pára-me Agora, no penúltimo encore, foi o momento que impulsionou a subida de uns quantos eleitos (ou mais atrevidos) ao palco, para que dele tomassem conta bem como, ocasionalmente, do microfone.

Os miúdos e os mais graúdos que esta noite não se coibiram de voltarem a ser miúdos, na despreocupação de quem há muito aguardava por este momento, sempre souberam, no entanto, que, inevitavelmente, este teria de chegar ao fim. “Alguma vez tinha de ser”, e coube a Fim da Canção colocar o último ponto final numa atuação cuja perfeição não se terá deixado manchar por condições sonoras menos favoráveis.

Para quem tiver a sorte de ter um bilhete para as últimas datas, hoje e amanhã, o convite foi deixado pela banda: “Apareçam!”

Fotografias: Ana Limão

Texto: Ariana Ferreira