O número 57 da rua da Glória acolheu, ontem à noite, uma das mais galardoadas bandas portuguesas da atualidade, os :PAPERCUTZ. O coletivo, que já recebeu prémios internacionais em 2008, 2009 e 2010, foi uma das 62 bandas eleitas para participar, este ano, no Red Bull Music Academy, em Nova Iorque. Escolhidos entre um total dequatro mil candidaturas, os :PAPERCUTZ foram único projeto português a receber tal privilégio. Para além disso, a banda já pisou palcos como o festival South By Southwest, em 2010 e 2012, e o Exit Festival, na Sérvia, em 2010. O coletivo demonstra, com isto, ser um projeto bem sucedido e reconhecido a nível internacional.

As portas abriram às 22h00 e, enquanto as pessoas iam chegando, o DJ da casa levava-nos por um passeio musical que durou mais de uma hora. O warm-up incluiu sonoridades como o chillout, o trip hop e o downtempo. Até o hip hop instrumental de DJ Shadow teve o seu tempo de antena no set, com o tema “Organ Donor”, do aclamado álbum “Endtroducing”, de 1996.

O relógio já marcava as 23 horas e as pessoas presentes ainda se contavam pelos dedos. Vários motivos podem estar na origem da fraca adesão que o concerto de ontem teve, mas, uma coisa é certa: os :PAPERCUTZ sofrem do síndrome que muitas outras bandas portuguesas sofrem, ou sofreram -são mais reconhecidos internacionalmente, que no seu próprio país. Talvez isso justifique a fraca afluência que o concerto de ontem teve. Uma banda com o calibre e a qualidade dos :PAPERCUTZ merecia, no mínimo, casa cheia.

O grupo subiu ao palco pouco depois. Toda a parafernália de equipamento que rodeava Bruno Miguel não deixava margens para dúvidas: ele é o mentor do projeto e toda a sonoridade da banda portuense tem origem na sua mente. Acompanhado, na voz, por Catarina Miranda e por um percussionista convidado, Bruno Miguel apresentou no Ritz Clube o seu mais recente trabalho, “The Blur Between Us”. Este é o segundo álbum do coletivo e conta com a participação do produtor norte-americano Chris Coady, que já trabalhou com bandas como Beach House, Yeah Yeah Yeahs e TV On The Radio. As letras das músicas são da responsabilidade de José Luís Peixoto, poeta e dramaturgo português, que concedeu ao álbum uma narrativa obscura e espiritual, explorando a morte enquanto fenómeno inerente à vida.

É mesmo a sonoridade sombria e muito carregada a principal característica deste trabalho. A escuta em CD transmite-nos uma experiência obscura e mórbida, como uma descida ao submundo, tal inferno de Dante. Ao vivo, a sensação é semelhante, no entanto, toda a presença em palco de Catarina Miranda acentua o lado obscuro e espiritual dos temas. Todo o conceito da banda é envolvente, os efeitos colocados na voz de Catarina perseguem-nos como se fossem chamamentos do além, os sintetizadores criam um ambiente escuro, frio e perturbante, as percussões jogam com o resto de tal forma, que nos assombram como almas condenadas. Quem idealizou este ambiente tão sombrio e tão lúgubre fê-lo da melhor forma, pois até ao vivo nos são despertadas tais sensações.

Alémdos temas do álbum novo (tocado quase todo na integra), ainda houve espaço para uma das canções mais badaladas dos :PAPERCUTZ, que, em antítese com o resto do concerto, teve uma perspectiva mais alegre e mais positiva. “Do Outro Lado do Espelho” foi o único tema do concerto cantado na língua de Camões e faz parte do trabalho anterior da banda, intitulado “Lylac”. Houve ainda tempo de viajar até finais de 80 com os The Cure, através de um cover do tema “Desintegration”, do álbum com o mesmo nome, lançado em 1989. Aparentemente, este cover serviu de inspiração à banda para criar “The Blur Between Us” e está, também ele, incluído no álbum deste ano. Este momento foi um dos mais aplaudidos da noite.

Já no encore, a banda cantou o single “Rivers”, pela segunda vez na noite, mas, desta feita, Bruno Miguel manifestou a vontade de fazer algo diferente. “Rivers” foi então interpretado numa versão acústica, sem recurso a microfones. O intuito era o de criar um momento mais íntimo e obrigar o público a aproximar-se do palco. O mesmo respondeu bem ao desafio e colou-se à banda para acompanhar de perto o último tema da noite. Terminado o concerto, nota positiva para o espetáculo dos :PAPERCUTZ que, apesar de estar ainda em estado embrionário, ainda vai dar muitas cartas em palcos nacionais e internacionais. A apresentação de “The Blur Between Us” continuahoje no espaço Plano B, no Porto.

Manuel Rodrigues