Palco Principal - Que palavra seria impossível não mencionar ao falar do seu novo álbum, “Contramão”?

Pedro Abrunhosa – A palavra «resistir». E, simultaneamente, a palavra «desistir». As duas estão sempre bastante juntas. Os meus discos sempre foram discos de resistência, de luta, de perseverança. Não uma luta ideológica - refletem uma atitude, uma atitude perante a vida, que implica estar alerta, estar de pé. Como eu digo neste disco: “ser inteiro e estar de pé”. É o que está aqui em causa. Por outro lado, não deixa de ser um disco de canções, apenas. Só isso, canções. Como o “Longe” e como todos os outros, um disco de canções, onde canto histórias, pessoas, com aquela faceta única, que é a de criar magia entre as pessoas, a de criar empatia com as pessoas, a de falar da realidade das pessoas, de uma universalidade de temas. Não sei como é que chego lá, mas, aparentemente, chego.

PP - Referiu que “Contramão” resultava de muita dedicação, muita observação da realidade, mas de pouca inspiração…

PA – Eu digo sempre isso, desde o início, desde o meu primeiro disco. Irrita-me a palavra inspiração. Inspiração é o ato de inspirar, é um ato físico. Podes inspirar ar, podes inspirar um gás tóxico. Inspiração na arte não existe, é um conceito que tem que ser posto de lado. Existe acutilância, observação, método, muito trabalho, sensibilidade e muitos mais ingredientes… E depois colocamos o cunho pessoal, a nossa personalidade, em cima desse aglomerado de condimentos. Porque todos nós, perante o mesmo facto, vemos de maneira diferente. O artista, o escritor, o criador tem uma voz mais amplificada do que as outras pessoas, mas a sua visão é apenas mais uma. Não há inspiração – há uma interpretação pessoal das coisas à sua volta. Inspiração, não. Este disco é um êxito. Não gosto de falar sobre o êxito que é, mas é. No iTunes, está em primeiro lugar; no Musicbox bateu recordes absolutos; nas vendas físicas e no ariplay também; no Spotify entrou diretamente para o segundo lugar. E ainda vamos tirar os Arctic Monkeys de lá para fora – não duvides! Portanto, estou muito contente, mas tudo isto é fruto de trabalho, de muito trabalho.

PP - Qualquer obra é auto-biográfica – também é o Pedro que o diz. Quão biográfica é esta? Como tem a crise atual afetado, na prática, a vida profissional do Pedro, enquanto músico e produtor?

PA - Os reflexos imediatos são, obviamente, a perda de mercado. Não há dinheiro, as pessoas estão mais contidas. Eu não posso dizer que o disco esteja a vender pior, porque não está. O disco até está a vender bastante melhor do que qualquer outro disco meu dos últimos anos. Acabámos de dobrar a encomenda para a fábrica. Mas nota-se no mercado. Não na falta de espetáculos… Nós temos tido uma agenda brutal...

PP – Sim, a digressão de apresentação de “Longe” revelou-se um sucesso, com salas lotadas por todo o país…

PA – Sim, e esta próxima, que arranca a 31 de dezembro no Terreiro do Paço, está imparável. Imparável! Mas não deixa de haver uma retração no mercado. Por exemplo, tivemos que fazer cortes e dispensar uma série de material que era fundamental, nomeadamente ao nível da luz. Mas, sobretudo, noto é a implicação nas pessoas. As pessoas chegam aos espetáculos com muita vontade de celebrar esta dor coletiva do momento. Noto que as pessoas estão muito mais sensíveis às questões sociais. Não há volta a dar. No estúdio também é um sítio onde se nota muita crise, uma grande retração também. Infelizmente.

PP - Todos Lá P'ra Trás é a faixa deste novo disco que aponta de forma mais direta o dedo ao governo, à sua ineficácia. Um país em crise tem sido, na sua opinião, sinónimo de música em crise?

PA – A Todos Lá P'ra Trás é um retrato do país, é uma fotografia das figuras caricatas que existem neste país, dos candidatos a cargos que querem apenas o cargo, não a função. Há uma avidez de cargos – senhor diretor geral, senhor secretário de Estado, senhor presidente, senhor vice-presidente, secretário de administração, tesoureiro… Em Portugal, há um vício de cargos. O país está cheio de pessoas, a ocupar cargos, ineficazes. E é isso que eu retrato ali. A canção pode ser dirigida ao Presidente da República, mas pode não ser. Por acaso, pessoalmente, acho que este é completamente ineficaz. Tanto faz tê-lo como não tê-lo. Este Presidente da República só demonstra aquilo que tenho vindo a dizer de há 20 anos para cá: como político, é medíocre. A minha esperança é que os portugueses tenham acordado um bocadinho em relação aos medíocres ou a alguns medíocres que elegeram. É uma chatice isso de nós votarmos, tradicionalmente, nos mesmos partidos. O português é muito tradicionalista, vota por inércia no mesmo partido. Mas não é por votarmos nos mesmos partidos que estamos a votar bem. Se calhar, é preciso abanar o sistema político-partidário. Eu acho que o eleitor tem que penalizar estas políticas e estes governantes. O Todos Lá P'ra Trás é isso. "Um homem a trabalhar e mais de vinte a dirigir": todos lá p'ra trás.

PP – Essa crise política tem-se refletido na indústria da música?

PA – Não sei, acho que não…

PP – É da opinião que os músicos deveriam assumir um papel mais interventivo? Sente-se sozinho nesta luta?

PA – Acho que o hip hop e o rap deveriam cumprir esse papel, mas não sei se estão a cumprir esse papel, ou não. Não estou muito atento. Por outro lado, a arte não tem que ser um panfleto. Se eu quisesse ser meramente interventivo, fundava um partido. Mas eu não quero isso. Eu quero é ser músico. Eu faço isto por diversão e também por missão humana porque, se eu tenho uma voz pública com alguma dimensão e se existe algum talento na minha arte de fazer música, então que ela seja, ao menos, acutilante, provocadora, instigadora, atual, contemporânea, abrangente. Que fale das coisas que são realmente importantes para as pessoas, como o amor, a morte, o desejo, o medo, mas também sobre a esperança, a luz, a paz e as questões sociais. Agora, o papel da música não é, de todo, ser amplificador dos males da sociedade. Nós não temos esse papel, não nos ponham esse papel em cima. Eu faço isto porque me divirto e porque é fácil ironizar com o estado do país. O Todos Lá P'ra Trás é uma ironia fácil porque o país é fácil de ironizar, infelizmente.

PP – Em A.M.O.R. afastamo-nos um pouco da crise que o país atravessa e enveredamos por outra mais abrangente: a crise que o fanatismo religioso abraça. Por que foi buscar esta temática?

PA - A questão do amor, aqui na sigla A.M.O.R., é muito importante. Este é um tema que faço ao vivo há muito tempo, há cerca de dois anos, e que tem um grande impacto. É quase uma prece que faço ao piano. Começou por ser um improviso, em que eu dizia: “O meu Deus não usa balas nem se explode na multidão / Que o teu Deus não use ferros nem se esconda na Santa Inquisição / Porque cada um tem um Deus na sua mão / E o nosso chama-se…”. E o público respondia: “A.M.O.R.”. É uma celebração do amor, uma plataforma comum a todos – porque toda a gente ama e toda a gente, de alguma forma, é amado. E eu ao vivo pergunto isso mesmo: “Quem é amado? Quem é que ama? Quem deseja ser amado?”. “Eu”, respondem 70 mil pessoas. Se houver uma plataforma comum entre os terroristas de várias tendências religiosas, entre as pessoas das várias tendências político-partidárias, futebolísticas, etc., essa plataforma é o amor – o amor pelos filhos, o amor pelos seus, pela família. A questão religiosa neste tema é apenas um pretexto. Nunca tinha falado de religião, mas decidi fazê-lo porque é um tema atualíssimo, um tema que as pessoas entendem, uma espécie de convergência ecuménica entre as pessoas à volta de uma coisa que nos é comum, que é o amor.

PP - Em Para os braços da minha mãe e Saudade conta com as participações de Camané e de Duquende, respetivamente. Dois artistas por quem assume uma admiração enorme, duas colaborações de sonho. Duas parcerias que corresponderam às expetativas eventualmente fermentadas em anos e anos de admiração?

PA – Não corresponderam, ultrapassaram, felizmente. Às vezes não ultrapassam, às vezes ficam aquém, mas comigo nunca aconteceu isso. Aqui, a realidade superou as expetativas, completamente. Foi brutal. Para os braços da minha mãe é um tema que fala da emigração jovem atual, que repete um percurso feito pelos nossos antepassados há 50 anos, feito pelos nossos avós, pais, tios. Um percurso que está muito presente na memória, uma fase que magoou muito o país e que largou uma cicatriz muito funda por cá. E esta vai, também, fazer a mesma coisa, reveladora que é do estado a que permitimos que o país chegasse. Mais uma vez, má gestão, má gestão, má gestão. E nem atinge só os recém-licenciados. Atinge toda uma miríade de pessoas que emigram sem qualquer especialização, com grandes dificuldades. Dificuldades piores ainda do que as das pessoas que têm um diploma. Foi a última canção a ser escrita, o disco já estava todo pronto, já estava a ser misturado na regi pelo João Bessa. E então eu fui para a sala principal do estúdio – eu estou constantemente a escrever, a compor, a explorar o piano, sento-me e as coisas vão surgindo – e, de repente, chego com aquela canção já pronta. Saiu-me de uma assentada, em duas horas. Tiveram que sair outras do disco para dar prioridade àquela. E, nessa altura, eu disse: “Acho que esta canção ficava excelente na voz do Camané”. Já me confessei fã dele e já fiz centenas de quilómetros só para o ver – para mais nada, só para o ver – e foi uma generosidade imensa da parte dele ter aceitado o convite. Com o Duquende, foi a mesma coisa. Eu tinha um fascínio pelo flamenco, consigo ficar horas a ouvir flamenco, sempre foi assim, é das músicas que mais ouço. Lembro-me que, durante a tour de promoção a “Viagens” – foram 200 espetáculos num ano – tinha no carro vários discos, um deles do Camarón de la Isla, que tinha acabado de falecer, e eu ouvia, ouvia, ouvia, ouvia aquilo e depois chegava a casa ou ao hotel e na Tve2, de madrugada, da meia noite até às seis da manhã, dava sempre flamenco, sem intervalo, e aquilo fascinava-me. Adormecia a ouvir flamenco e continuo a ouvir muito flamenco. Sempre achei uma música muito complexa, muito terra, muito raça, muito soul. Acho que é, de resto, a música soul europeia. Não encontro grande diferença entre as duas. Pelo contrário, acho que há uma grande similaridade entre a música soul e o flamenco. A maneira como o Duquende e o Camarón, que são, para mim, os grandes flamenquistas, e o James Brown, o Otis Redding e o Percy Sledge cantam é muito parecida. E, quando escrevi aquela canção, percebi que poderia ser cantada por um flamenquista, desde que ele tivesse a paciência de me explicar como é que se fazia. O Duquende trouxe um produtor de voz – o Pepe de Lúcia, irmão do Paco de Lúcia – que, comigo e com o João Bessa, o dirigiu. Ele cantou ininterruptamente durante oito horas. Ininterruptamente. Sem se levantar, sem sair, sem beber água, sem comer, sem nada. Foi uma coisa extra-humana, com as luzes apagadas, todos juntos. Um momento mágico, aprendi muito. Não percebi nada do que ele fez, sei apenas que o resultado é fantástico.

PP – Nessa música é cantada a saudade…

PA – Não tem piada ser um catalão a cantar a saudade?

PP – Sim, um conceito tão português…

PA – Poético e irónico, não? Dar a um cigano a palavra saudade, que ele não conhece, com um texto escrito por mim e dizer-lhe: “Saudade é isto, vê se percebes e agora explica aos portugueses o que é que é a saudade”. No seio da comunidade flamenca, esta canção está a ter algum impacto, pois o flamenco, tal como o fado, é muito purista. Ou seja, eu sou um payo que se atreveu, que teve o arrojo de quebrar essa barreira. Já o tinha feito com o James Brown e com o Maceo Parker, quando os desafiei para tocar comigo. Lembro-me do Maceo Parker dizer: “Então aquele branquelas magrinho quer fazer funk?”. E depois fez um ano de estrada comigo – um ano, um ano –, ficámos os maiores amigos e fiquei a ser muito respeitado dentro da comunidade funk norte-americana. Tanto é, que ele me convida frequentemente para cantar com ele. Com o Duquende, foi mais ou menos a mesma coisa: tive o atrevimento de chamar um flamenquista de grande tradição para vir cantar uma canção escrita em português, traduzida para espanhol por dois professores da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.

PP – Em “Contramão voltamos a encontrar roupagens funk, em A Parte do Meio. É bom recordar, na voz do Pedro, o registo com que se deu a conhecer ao mundo, na década de 90…

PA – O funk, na altura, era uma coisa mais fun, mais divertida. Eu vinha do jazz e aquilo era o caminho mais lógico. Por outro lado, não havia, na altura, funk em Portugal – zero – e pareceu-me um grande desafio fazer funk em Portugal. Mas depois aquilo começou a desinteressar-me, pelo que só agora, neste disco, repeguei no funk com A Parte do Meio, que dá uma vontade de dançar, de curtir… É outra música que já faço ao vivo há dois anos. Quando começo a fazer aquilo ao vivo - "Gosto / Que me mordas o Pescoço..." - , as pessoas não conhecem aquilo de lado nenhum, mas depois, quando chego ao refrão - "Só mexe a parte do meio / Só mexe a parte do meio..." - já está toda a gente a dançar.

PP - Volta a contar, neste disco, com os Comitê Caviar e com o João Bessa ao seu lado. Em equipa vencedora não se mexe ou ainda ambiciona campeonatos mais altos?

PA – Então não se mexe? Estou muito bem servido, quer com o João Bessa, que fez um trabalho notável na produção, captação e mistura – o som deste disco tem uma assinatura, que é João Bessa -, quer com os Comité Caviar, músicos que estão acima de qualquer suspeita, cada um com uma linguagem muito forte, a encaixarem que nem peças lego uns nos outro, já com muitos anos de estrada, muitos concertos – a digressão "Longe" acabou a 7 de setembro, durou três anos, foi muito, muito, muito concerto, deu para criar uma linguagem homogénea com os Comitê Caviar. Mas não se podem repetir fórmulas. Devemos explorar, experimentar – experimentar é fundamental -, evoluir. Para já, somos uma equipa vencedora, mas as canções que aqui estão apontam para toda uma possibilidade. É como estares numa praça onde tens dez ruas, qual delas a melhor para ir.

PP - O álbum “Viagens” cumpre, em 2014, 20 anos. Não pretende, contudo, comemorar o marco. Porquê?

PA – Comemorar o quê? Comemorar os 20 anos de um disco?

PP – São, muitas vezes, marcos celebrados por vários artistas ou bandas, nacionais ou internacionais, com um concerto ou uma digressão especial…

PA – A única coisa que eu quero comemorar é o futuro.

Sara Novais