Capaz de “soluções elegantes, que apostam na eloquência dos pormenores”, como a crítica brasileira o definiu, Chico Buarque editou este ano o seu quinto romance, “Essa Gente”, onde observa com ironia o “colapso em seu redor”, e quando o Presidente brasileiro se mostrou adverso à assinatura do diploma que consagra a atribuição do prémio pelos governos de Portugal e Brasil, viu nesse ato uma nova distinção, um segundo Prémio Camões.

Os jornalistas da Lusa elegeram-no como figura do ano do mundo lusófono.

Para o júri do Prémio Camões, a maior distinção literária de língua portuguesa, a escolha de Chico Buarque reconhece a sua “contribuição para a formação cultural de diferentes gerações”, e o “caráter multifacetado” do seu trabalho, da poesia, ao teatro e ao romance, estabelecendo-se como “referência fundamental da cultura do mundo contemporâneo”.

A atribuição do prémio foi de imediato celebrada no universo de língua portuguesa, de autores a dirigentes políticos, com a exceção do Governo brasileiro e do seu Presidente, Jair Bolsonaro.

Se o Presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa, disse, na primeira hora após o anúncio, que “só pode ser unânime” a decisão de distinguir Chico Buarque, tendo rapidamente promulgado o diploma do prémio instituído pelos dois países, só em outubro, cerca de cinco meses mais tarde, se tornou claro que Bolsonaro estava longe de ter essa assinatura entre as suas prioridades, até ao termo de um eventual segundo mandato, em 31 de dezembro de 2026.

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As declarações do Presidente brasileiro acentuaram a contestação no setor cultural do seu país, que se estendeu a autores como a escritora portuguesa Hélia Correia e o moçambicano Mia Couto.

A Cultura tem sido aliás um vetor de afirmação e controlo do poder de Bolsonaro, que declarou “guerra contra o marxismo cultural” e tem defendido a censura nas diferentes áreas do setor.

Após a sua tomada de posse, em janeiro, os principais organismos da cultura foram ocupados por elementos próximos do presidente brasileiro, desde a Fundação Nacional das Artes (Funarte) à Agência Nacional de Cinema (Ancine), passando pela Fundação Cultural Palmares, entidade pública para a promoção da cultura afro-brasileira, e a Caixa Económica Federal, que começou a aplicar um sistema de censura prévia nos seus centros culturais, em todo o Brasil, exigindo saber o posicionamento político dos artistas.

A secretaria de Cultura, no governo, é ocupada desde novembro pelo encenador e dramaturgo Roberto Alvim, até então presidente da Funarte, uma das mais importantes entidades de apoio às artes no país, que revelara a lealdade a Bolsonaro, acrescentando as palavras “cristão, nacionalista e conservador” ao seu perfil no Facebook.

Alvim destacara-se em outubro, manifestando “o mais absoluto desprezo” pela atriz Fernanda Montenegro, quando a protagonista de “Central do Brasil” celebrou 90 anos. Na altura, Alvim disse querer formar um “exército de grandes artistas espiritualmente comprometidos com o presidente e com os seus ideais”, dispostos a “dar as vidas pela edificação do Brasil, através da criação de obras de arte que redefinam a história da cultura nacional”.

Para lhe suceder na Funarte, indicou Dante Mantovani, um professor de Linguística, que disse no seu canal no YouTube que “o Rock leva ao aborto, ao satanismo” e “ativa a indústria do aborto”. A Agência Nacional de Cinema, dirigida por um líder evangélico, Alex Braga Muniz, cortou apoio à participação de realizadores brasileiros em festivais internacionais, e proibiu a exibição de “A Vida Invisível”, de Karim Aïnouz, longa-metragem candidata à nomeação para os Óscares de 2020.

A Fundação Cultural Palmares foi entregue ao jornalista Sérgio Nascimento de Camargo, que nega a existência de racismo, (“'negrada' daqui reclama porque é imbecil e desinformada pela esquerda”, afirmou) e que quer pôr fim ao Dia da Consciência Negra, que considera “uma vergonha” (“sou negro e repudio essa data”, escreveu).

Chico Buarque, que enfrentou a ditadura militar (1964-1985) e detém um percurso de mais de meio século nas letras e na Música Popular Brasileira, usou sempre poucas palavras em todo o processo.

O seu mais recente romance, “Essa Gente”, que sucede a “O Irmão Alemão” e “Leite Derramado”, foi construído como diário de um escritor em bloqueio. Atravessa a decadência do país, num percurso que vai de dezembro de 2016 a setembro de 2019, enquanto o Rio de Janeiro colapsa em seu redor.

Em novembro, quando a obra foi publicada, o jornal Estado de São Paulo destacou as “soluções elegantes, que apostam na eloquência dos pormenores”, e a “proximidade com o agora que torna a escrita de Chico Buarque mais atraente (...), com as escolhas que fez para não se desviar dos problemas do presente sem, contudo, tomar uma atitude beligerante”.

Vencedor por duas vezes do Prémio Jabuti, com “Leite Derramado” e “Budapeste”, Chico Buarque tem em “Essa Gente” o seu quinto romance, num percurso iniciado com “Estorvo”, em 1991, mas que já contava, desde a década de 1960, com obras para palco, como “Roda Viva”, “Gota d’Água” e “Ópera do Malandro”, e até mesmo com histórias para crianças, como “Chapéuzinho Amarelo”.

Quando soube da atribuição do Prémio Camões, Chico Buarque publicou nas redes sociais que ficava “feliz e honrado por seguir os passos de Raduan Nassar”, o escritor brasileiro distinguido em 2016, que se afastara para uma fazenda no interior do estado de São Paulo e dela voltara para confrontar o que considerava a degradação do “Estado democrático de Direito”, ainda durante a presidência de Michel Temer.

Sobre a posição do presidente brasileiro, Chico Buarque limitou-se a publicar na sua conta no Instagram: “A não assinatura do Bolsonaro no diploma é para mim um segundo Prémio Camões”.

O Governo português, por seu lado, disse à Lusa que as regras seriam cumpridas, garantindo que a entrega do Prémio Camões se realizaria em Portugal, “na data conveniente a quem entrega e a quem recebe o Prémio”.

A data foi anunciada em dezembro, a contento de ambas as partes: o dia 25 de abril de 2020, feriado que assinala a queda da ditadura portuguesa, aquela que Chico Buarque cantou por duas vezes em “Tanto Mar”, primeiro logo após a revolução e, mais tarde, em 1978, quando já tinha passado “a festa”, mas sempre com “o velho cravo” que teimou em guardar.

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