A ideia de um festival de canções à escala europeia pretendia “unir uma Europa devastada pela II Guerra Mundial”, mas, segundo o investigador Jorge Mangorrinha, “o ambiente político sempre esteve presente, originando tensões e conflitos”.

Num estudo publicado em 2015 sobre “A cultura eurovisiva: canções, política, identidades e o caso português”, o investigador da Universidade Lusófona sustenta que o festival foi ao longo de seis décadas “palco para dar voz” a alguns países que associaram à sua representação algum “significado político”.

Entre a primeira edição, em 1956, em Lugano (Suíça), e 1961, o festival teve apenas representados países da Europa Ocidental.

A adesão de Espanha (1961) e de Portugal (1964) foram, segundo o investigador, duas das participações associadas “ao interesse estratégico dos dois governos totalitários”.

No primeiro caso, refere o estudo, “para projetar a imagem de Espanha no panorama internacional”. No segundo “para atenuar a imagem fragilizada” de Portugal devido à crescente tensão nas colónias.

Os dois países não conseguiram, no entanto, evitar, na edição de 1964, protestos contra as políticas ditatoriais de Franco e Salazar.

O concorrente português, António Calvário, “esteve sempre acompanhado por um elemento do consulado, que o prevenia constantemente para ter controlo nas declarações”, disse Jorge Mangorrinha à agência Lusa.

No entanto, a edição acabou marcada por um protesto político, quando já depois da atuação de Calvário, “um homem entrou em palco e exibiu um cartaz com 'Boycott Franco & Salazar' ['Boicotem Franco e Salazar’]", acrescentou.

Pelo palco do festival tinha passado, já em 1961, a rejeição à política colonial no Congo (Bélgica), e, em 1968, refere Mangorrinha no estudo, “consta-se que Franco terá mandado subornar elementos do júri para ganhar e dar uma imagem internacional positiva de Espanha”.

Outro foco de tensão registou-se, segundo o investigador, a participação dos estados da antiga Jugoslávia (Bósnia-Herzegovina, Croácia, Eslovénia, Macedónia, Montenegro e Sérvia) que “no período mais tenso” aproveitaram o festival “para transmitirem uma imagem pretensamente positiva”.

A invasão Turca do Chipre (1974) levou a Grécia a abandonar a competição, em 1975. No ano seguinte voltou a participar, mas apresentando um protesto contra a Turquia.

Em plena abertura do Leste europeu “fizeram-se referências ao Muro de Berlim e à falta de liberdade nessa região”, com a Alemanha, Irlanda e Noruega a marcarem o protesto na edição de 1990 e a Itália a “pedir um Europa mais unida”, pode ler-se no documento.

A Geórgia “quis deixar uma mensagem contra o presidente russo (Putin)” e foi, segundo o investigador “convidada pela organização a mudar o tema, o que não foi aceite”.

Em vários anos foi recorrente “o ambiente tenso entre a Arménia e Azerbaijão, com episódios de veiculação nacionalista durante os diretos”, refere ainda o estudo.

Em 2003, o protesto incidiu sobre a entrada britânica na guerra do Iraque.

Em 2012, em Baku, a própria organização foi alvo de críticas pela sua “branda intervenção” na edição em que ativistas e comunicação social defendiam uma abordagem mais forte sobre as questões dos direitos humanos e a falta de liberdade de expressão da comunicação social no Azerbaijão.

A Dinamarca organizou, em 2014, uma das mais politizadas edições do festival, com as concorrentes russas a serem assobiadas pela assistência em protesto contra a anexação da Crimeia e a política ‘anti-gay’ do governo de Moscovo.

Alegando “questões técnicas” a organização decidiu contabilizar os votos da Crimeia “como ucranianos e não russos”.

Em 2017, a Rússia recusou participar no concurso realizado em Kiev, na Ucrânia, depois de os serviços de segurança daquele país terem impedido a entrada da cantora Yulia Samoylova por esta ter visitado a Crimeia após a anexação russa. Samoylova vai participar este ano, na edição em Lisboa.

A Europa que o festival quis unir continua assim “dividida e longe de alcançar um consenso político”.

Já a música afirma-se como “poderosa ferramenta” nas causas “políticas ou de visibilidade dos países”, que por esta via são divulgadas à escala planetária, conclui o estudo.

De acordo com as regras da organização, não são permitidas “letras, discursos ou gestos de natureza política ou similar” durante o evento, da mesma forma que são proibidas “mensagens que promovam organizações, instituições, causas políticas ou outras, marcas, produtos ou serviços”.